A pressão internacional por preservação que ameaça soja e carne do Brasil

A pressão internacional por preservação que ameaça soja e carne do Brasil

A última conferência da Organização das Nações Unidas (ONU) sobre o clima, a COP26, deu combustível para uma série de mudanças em regras comerciais que estão sendo discutidas por grandes países e podem ter impacto significativo no Brasil.

As propostas de mudanças buscam combater a compra de produtos associados ao desmatamento e têm sido debatidas por legisladores ou grupos de importadores na China, União Europeia e Estados Unidos.

Na COP26, os dois países e o bloco assumiram o compromisso de zerar o desmatamento no planeta até 2030 e prometeram usar políticas comerciais para alcançar a meta.

O combate ao desmatamento é uma das principais estratégias globais para frear as mudanças climáticas, já que a destruição das florestas lança na atmosfera uma grande quantidade de gases causadores do efeito estufa.

As iniciativas em discussão podem atingir os dois principais pilares do agronegócio nacional: a soja e a carne bovina.

Isso porque os dois produtos, que hoje têm grande penetração no mercado global, são frequentemente associados ao desmatamento ocorrido no Brasil.

Analistas ouvidos pela BBC News Brasil concordam que há uma pressão inédita sobre os produtos, mas há divergências sobre a postura que a China adotará nesse cenário.

E a posição do país asiático é a que mais importa, pois a China respondeu por 73,2% das compras de soja em grãos e por 43,2% das compras de carne bovina do Brasil em 2020.

A soja e a carne bovina ocupam, respectivamente, o primeiro e o sexto lugar no ranking de exportações brasileiras.

Ofensiva da União Europeia
Para Raoni Rajão, professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), as mudanças legislativas em discussão na União Europeia podem fechar as portas para pelo menos um quinto da soja brasileira que hoje é exportada para o bloco.

Segundo Rajão, esse é o volume da soja cultivada em propriedades que desmataram ilegalmente após 2008 – embora essa área desmatada não tenha sido usada pelos proprietários para produzir soja, e sim outros produtos como milho, sorgo ou carne.

O cálculo foi publicado em um artigo de Rajão na revista científica Science em 2020 e se baseou nos dados de 815 mil propriedades rurais com registro no Cadastro Ambiental Rural (CAR), um sistema oficial do governo.

Segundo Rajão, essa soja hoje entra no mercado europeu, mas seria barrada caso a União Europeia aprove as regras que estão em discussão e que determinam que o bloco só compre alimentos produzidos de forma legal.

“Se aquele imóvel está desmatando ilegalmente, toda a produção naquela área é ilegal”, diz o pesquisador.

Mas o alcance das novas regras pode ser ainda maior e entrar em conflito com a legislação brasileira.
Hoje, o Código Florestal brasileiro exige que proprietários rurais conservem entre 20% e 80% de suas propriedades, percentual que varia conforme o bioma onde elas estão. As áreas restantes das propriedades podem ser desmatadas legalmente, desde que se obtenha uma licença.

Pelas novas regras em discussão na União Europeia, no entanto, qualquer produto oriundo de áreas desmatadas a partir de 2021 seria barrado, ainda que esse desmate seja considerado legal pelo país de origem.

A medida impactaria principalmente a soja produzida na região de Cerrado conhecida como Matopiba, que engloba partes do Maranhão, do Tocantins, do Piauí e da Bahia.

Essa é a principal região brasileira por onde a soja tem se expandido e ainda poderia se expandir nos próximos anos.

Já na Amazônia, um acordo entre as principais empresas compradoras de soja já impede a comercialização de grãos cultivados em áreas desmatadas após 2008, o que tem freado a expansão deste cultivo nas áreas recentemente derrubadas no bioma.

Protecionismo comercial?
As restrições europeias em discussão também se aplicariam a outros produtos, como carne bovina, café, cacau, madeira e óleo de palma.

Para que os itens consigam entrar no mercado europeu, os fornecedores teriam que comprovar que os produtos não têm qualquer relação com o desmatamento – trabalho que tende a elevar os custos.

A proposta gerou duras reações entre produtores de soja brasileiros. A Aprosoja, principal associação do setor, classificou a iniciativa de “protecionismo comercial disfarçado de preocupação ambiental”.

Em nota, a associação afirmou que a iniciativa “trará impacto direto não somente para os brasileiros, mas também aos países que são abastecidos pelo Brasil, entre eles grandes mercados na Ásia, na África e, até mesmo, na própria Europa”.

A União Europeia é a segunda maior importadora de soja em grãos brasileira, responsável por 8% das compras do produto nos últimos cinco anos. E é a maior compradora de farelo de soja nacional, com 52% das compras.

A nota da Aprosoja não detalha como outros países seriam impactados pela eventual aprovação da proposta europeia.

Para analistas, essa influência se daria porque os padrões europeus podem se tornar uma referência para outros países interessados em manter uma boa relação comercial com a UE.

E a China?
Mas a proposta europeia poderia incentivar uma nova atitude da China frente à soja brasileira?

Para Raoni Rajão, independentemente do que façam os europeus, o governo chinês já tem sinalizado a intenção de coibir importações associadas ao desmatamento – algo que pode, sim, impactar a soja brasileira.

“A China, durante muito tempo, foi considerada pelo agro brasileiro como aquele país que compra qualquer coisa sem preocupações ambientais, mas essa já era uma leitura errada faz algum tempo”, afirma o pesquisador.

Ele cita como exemplo uma declaração feita em 20019 pelo diretor-executivo da Cofco, estatal chinesa que é uma das principais importadoras de alimentos do mundo e compra um grande volume de soja brasileira.

O executivo disse que a empresa buscaria ter “cadeias mais sustentáveis” – declaração que, segundo Rajão, está alinhada com a postura do governo central em Pequim.

Crédito barato
O pesquisador afirma que a atitude não reflete necessariamente uma maior preocupação dos chineses com questões ambientais, mas sim a busca dessas empresas por crédito barato em instituições como o Banco Mundial.

“Hoje, esse empréstimos só estão saindo se a empresa tem compromissos ambientais”, diz Rajão.

O pesquisador cita outro gesto da China que, segundo ele, sinalizaria uma nova postura do país em relação ao comércio de produtos ligados ao desmatamento.

Na COP26, a China assinou uma declaração conjunta com os Estados Unidos na qual os países se comprometeram a banir o desmatamento ilegal associado a importações agrícolas.

“Banir é uma palavra muito forte”, diz Rajão.

“Foi a sinalização mais importante que a China fez (na área ambiental) nos últimos anos”, afirma.

Dependência da soja brasileira
Já Daniele Siqueira, analista de mercado da AgRural, uma assessoria brasileira de comercialização de soja e milho, vê os gestos chineses com algum ceticismo.

Ela afirma que, há alguns anos, a China afirmou que se tornaria uma economia de livre mercado para ingressar na Organização Mundial do Comércio (OMC), mas jamais cumpriu a promessa.

“Nesses encontros (como a COP26), há muitas intenções, muitos discursos, mas muitas dessas coisas não são postas em prática”, diz.

Para Siqueira, a China não tem condições de reduzir as compras de soja brasileira de modo significativo hoje, pois não há outros países capazes de substituir a produção do Brasil.

“Eles (chineses) podem tomar alguma medida ou outra, mas nada no curto prazo e nada vagamente parecido com o que estão discutindo os europeus”, diz a analista.

Segundo Siqueira, a China depende da soja brasileira para alimentar seu rebanho suíno, principal fonte de proteína animal do país. Por isso, a soja brasileira é hoje essencial para a segurança alimentar chinesa, diz ela.

Restrições à carne
Se há divergências quanto ao impacto de novas regras comerciais para a soja brasileira, a carne nacional parece estar mais pressionada.

Raoni Rajão afirma que um grupo de 60 grandes importadores de carne chineses enviou um sinal importante ao Brasil nos últimos meses.

O grupo anunciou a meta de só comprar gado abatido até os 30 meses de idade e agora discute a possibilidade de barrar carne oriunda de qualquer ecossistema natural que venha a ser transformado em pastagem.

A idade de abate do gado interfere na quantidade de metano que ele produz ao longo da vida. O gás metano é um dos principais causadores do aquecimento global e tem como uma de suas principais fontes a digestão de bovinos.

Na COP26, mais de cem países – entre os quais o Brasil – assumiram o compromisso de cortar as emissões globais de metano em 30% até 2030 em relação aos padrões de 2020.

Para alcançar a meta, especialistas afirmam que a idade média de abate dos bois terá de cair no Brasil, país com um dos maiores rebanhos bovinos do mundo.

Hoje, Rajão diz que a média de abate no Brasil “é acima dos 36 meses, beirando os 40 meses”, o que deixaria boa parte da carne produzida aqui fora dos novos padrões chineses.

Segundo ele, é possível antecipar o abate no país, mas para isso seria necessário melhorar a genética dos rebanhos e complementar a alimentação dos animais mantendo-os confinados, ações que exigiriam investimentos dos pecuaristas.

“Aquele gado que fica velho no pasto, engordando e emagrecendo, e que serve como uma espécie de poupança ambulante do pecuarista, é um gado que gera muita emissão e perderá mercado”, diz Rajão.

Os novos critérios chineses para a compra de gado são discutidos enquanto o país asiático impõe um bloqueio à carne bovina brasileira. Os embarques foram interrompidos no início de setembro após dois casos atípicos de vaca louca terem sido registrados no Brasil.

A suspensão das vendas fez os preços da carne caírem 11,8% no Brasil em outubro – a primeira queda nos últimos 16 meses – e foram um sinal de como decisões chinesas podem impactar o setor.

Restrições nos EUA
O possível endurecimento da China nas regras para compras de carne se soma a uma proposta em discussão no Congresso dos Estados Unidos que também pode impactar pecuaristas brasileiros.

A iniciativa, proposta pelo senador Brian Schatz e pelo deputado Earl Blumenauer, busca dificultar as importações pelos Estados Unidos de produtos ligados ao desmatamento.

Os dois congressistas são do Partido Democrata, o mesmo do presidente Joe Biden, que elegeu o combate às mudanças climáticas como uma de suas prioridades de governo.

Em 2021, o Brasil deverá ser o quarto maior exportador de carne bovina congelada aos Estados Unidos e o maior fornecedor de material bruto para a fabricação de assentos de couro para carros – dois setores que seriam impactados pela aprovação da proposta.

Consumidores no comando
Para Eduardo Assad, professor do curso de Mestrado Profissional em Agronegócios da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), tanto a soja quanto a carne brasileiras serão impactadas pelas mudanças comerciais em discussão.

Segundo Assad, os produtores desses itens serão obrigados a realizar um “trabalho de rastreabilidade mais preciso”, para comprovar que não têm qualquer vínculo com o desmatamento.

Assad vê uma novidade do movimento que busca restringir as importações associadas a desmatamento: o protagonismo dos consumidores.

“Os países ricos vão deixar de comprar esses produtos porque, se não fizerem, os consumidores vão deixar de comprá-los”, afirma.

“Não são mais os grandes compradores que vão ditar o que o mercado faz, agora é o consumidor”, diz.

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