A escassez de marítimos na cabotagem

Por Andréa Simões*

A cabotagem consolidou-se, nos últimos anos, como um dos modais mais promissores da logística nacional. Em 2024, o segmento movimentou 1,5 milhão de TEUs, segundo dados da Associação Brasileira dos Armadores de Cabotagem (ABAC), o que representa uma expansão de 19,8% em relação ao ano anterior. Desde 2008, o volume transportado pelo modal praticamente dobrou. Esse avanço reflete, além da resiliência do setor, os esforços de modernização da frota e a crescente busca por soluções logísticas sustentáveis. O ritmo de crescimento, no entanto, esbarra em um problema estrutural ainda pouco enfrentado com a devida urgência, que é a formação e a disponibilidade de mão de obra qualificada.
Atualmente, a formação de oficiais da Marinha Mercante está concentrada em duas instituições: o Centro de Instrução Almirante Graça Aranha (CIAGA), no Rio de Janeiro (RJ), e o Centro de Instrução Almirante Braz de Aguiar (CIABA), em Belém (PA). Juntas, essas escolas formam pouco menos de 300 novos oficiais por ano, de acordo com as vagas disponibilizadas em 2024, número esse insuficiente para atender à demanda imposta pela expansão do setor.
Um estudo conduzido pela Fundação Vanzolini, em parceria com o Centro de Inovação em Logística e Infraestrutura Portuária da USP (CILIP), estima que será necessário formar cerca de 4 mil profissionais até 2030 para suprir a atual demanda do segmento. A defasagem é expressiva e tende a se agravar caso não sejam adotadas medidas estruturantes para ampliar e diversificar a capacidade formativa nacional.
Mais do que uma limitação quantitativa, o modelo atual de formação enfrenta um descompasso em relação às exigências atuais da operação. Embora ofereça sólida capacitação técnica, ainda carece de conteúdos voltados à gestão, liderança, segurança organizacional, compreensão do negócio e uso de tecnologias aplicadas à rotina de bordo. Essa lacuna impõe aos profissionais um esforço individual para complementar sua formação, muitas vezes por meio de MBAs, especializações ou programas corporativos, criando um ambiente em que apenas os mais preparados conseguem se destacar.
Rotatividade elevada compromete estabilidade operacional
A elevada rotatividade de tripulantes no setor é outro fator igualmente crítico quanto à escassez de marítimos. Estimativas apontam que, na cabotagem, o índice de turnover gira em torno de 20% ao ano. Em outras palavras, a cada cinco tripulantes, um é substituído anualmente, uma taxa que compromete a previsibilidade operacional e impõe desafios crescentes à gestão de pessoas a bordo.
As causas para esse fenômeno são multifatoriais, mas a competição com o setor offshore se sobressai. A indústria de óleo e gás, com histórico de remunerações mais elevadas e escalas de trabalho mais atrativas, frequentemente absorve profissionais da cabotagem, oferecendo condições que ainda não podem ser plenamente replicadas pelas empresas de navegação costeira.
Essa movimentação traz consequências que vão além da simples substituição de pessoal. Cada desligamento gera custos operacionais e administrativos, demanda replanejamento logístico e, em casos extremos, pode levar à suspensão temporária de rotas por falta de tripulação habilitada. Além disso, a instabilidade das equipes prejudica a construção de vínculos interpessoais e a consolidação de práticas colaborativas, elementos fundamentais para o bom desempenho a bordo.
Com frequência, as empresas se veem forçadas a iniciar do zero o processo de integração de novos profissionais, o que representa não apenas uma sobrecarga para as lideranças embarcadas, mas também um obstáculo à formação de uma cultura organizacional sólida. Em um ambiente técnico e de alta complexidade como o marítimo, o impacto dessa rotatividade se traduz em riscos operacionais, perda de eficiência e, em última instância, redução da competitividade do setor.
Perspectivas e caminhos para a reversão do cenário
Reverter o quadro atual exige medidas estruturantes e uma atuação coordenada entre os diversos atores do ecossistema logístico e marítimo. Do ponto de vista institucional, seria fundamental considerar a possibilidade de credenciamento de novas entidades formadoras, com supervisão técnica adequada, como forma de ampliar a oferta de cursos e modernizar metodologias de ensino. Além disso, revisar, ainda que em caráter emergencial, critérios de certificação pode contribuir para mitigar os efeitos imediatos da escassez de mão de obra, desde que respeitados os padrões de qualificação exigidos pela atividade.
As empresas, por sua vez, podem assumir protagonismo na retenção e valorização dos profissionais. Investir em programas internos de desenvolvimento, oferecer planos de carreira transparentes, estruturar avaliações de desempenho e garantir boas condições de trabalho são iniciativas que contribuem diretamente para a fidelização dos talentos já embarcados. Em um cenário de alta competitividade, o ambiente organizacional pode ser tão decisivo quanto a remuneração.
É preciso considerar, ainda, que grande parte dos profissionais marítimos se orgulha da própria trajetória. Preservar esse sentimento de pertencimento e projetar um futuro atraente para os que estão ingressando exige esforço coletivo e políticas claras. A cabotagem tem potencial para crescer de forma sustentável, mas seu avanço dependerá, em grande medida, da capacidade do setor de formar, atrair e reter os profissionais que garantirão o funcionamento das operações nos próximos anos.
*Diretora de Gente, Cultura e Transformação Digital da Informação na Log-In Logística Integrada, e Vice-presidente de Educação da Associação Brasileira de Logística (Abralog).
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